Mãe

Eu tinha 7 anos quando matei minha mãe pela primeira vez.Eu não a queria junto a mim quando chegasse à escola em meu 1º dia de aula.Eu me achava forte o suficiente para enfrentar os desafios que a nova vida
iria me trazer.Poucas semanas depois descobri aliviado que ela ainda estava lá, pronta
para me defender não somente daqueles garotos brutamontes que me ameaçavam,como das dificuldades intransponíveis da tabuada.
Quando fiz 14 anos eu a matei novamente.Não a queria me impondo regras ou limites, nem que me impedisse de viver a plenitude dos vôos juvenis.Mas logo no primeiro porre eu felizmente a descobri rediviva - foi quando ela não só me curou da ressaca, como impediu que eu levasse uma vergonhosa surra de meu pai.
Aos 18 anos achei que mataria minha mãe definitivamente, sem chances para ressurreição.Entrara na faculdade,iria morar em república, faria política estudantil, atividades em que a presença materna não cabia em nenhuma hipótese.Ledo engano: quando me descobri confuso sobre qual rumo seguir voltei à casa materna, único espaço possível de guarida e compreensão.
Aos 23 anos me dei conta de que a morte materna era possível, apenas requeria lentidão...Foi quando me casei, finquei bandeira de independência e segui viagem.Mas bastou nascer a primeira filha para descobrir que o bicho 'mãe' se transformara num espécime ainda mais vigoroso chamado 'avó'. Para quem ainda não viveu a experiência, avó é mãe em dose dupla...
Apesar de tudo continuei acreditando na tese da morte lenta e demorada, e aos poucos fui me sentindo mais distante e autônomo, mesmo que a intervalos regulares ela reaparecesse em minha vida desempenhando papéis importantes e únicos, papéis que somente ela poderia protagonizar...
Mas o final dessa história, ao contrário do que eu sempre imaginei, foi ela quem definiu: quando menos esperava, ela decidiu morrer.Assim, sem mais, nem menos, sem pedir licença ou permissão, sem data marcada ou ocasião para despedida.Ela simplesmente se foi, deixando a lição que mães são para sempre.
Ao contrário do que sempre imaginei, são elas que decidem o quanto esta eternidade pode durar em vida, e o quanto fica relegado para o etéreo terreno da saudade...
- PELEGI.Alexandre

Mente Urbana

De noite os sussurros agoniantes  de memórias que minha mente atormentam, me fizeram levantar perturbado, enquanto as estrelas velavam meu sofrimento físico e mental, com toda certeza não sou nem o primeiro nem o último dos mortais, que levanta na madrugada agoniante e fria enquanto seus pensamentos se revelam em visões de pesadelos delirantes.


Sonhei com mil coisas diferentes,via minha mãe, tio avós e todos os demais parentes, via todos os projetos futuros passando velozmente diante dos meus olhos e depois de dado tempo se esfacelando em câmera lenta enquanto eu apreciava aquele pandemônio mental que meu cérebro criava. Caminhei até a cozinha e comecei a fazer um café, ainda era alta madrugada mas um pouco de cafeína desanuviaria as minha idéias, enquanto a água não fervia fui até a sala e comecei a olhar o movimento da janela, o ponto de ônibus já estava cheio, isso dava para notar morando no terceiro ou no décimo terceiro andar do prédio, muita gente tocando a vida com ânimo (mesmo que sendo pouco), eu já não tinha esse luxo, e também não sabia de onde saía tanta força. Talvez por ser tão surrado a vida inteira os mais pobres se acostumem com a ideia de que sem força de vontade nada se alteraria em suas vidas; e não digo isso como se eu fosse alguém com mais condições de vida que qualquer um deles, talvez eu só costume refletir mais sobre o assunto que a maioria...
A essa altura o café já estava pronto eu sentei na poltrona da sala sem acender a luz, para mim bastava a iluminação proveniente da lua.
Toda a madrugada era sempre essa mesma ladainha, acordado não consigo deixar de tomar café, tomando o café não deixo de ficar acordado, e então inicio minha rotina todos os dias da mesma forma, despertando abruptamente de pesadelos surreais e refletindo entre xícaras e mais xícaras de café sobre tudo que sonhei.
Depois disso me levanto me troco e desço para o ponto em frente ao meu prédio onde minha rotina prossegue como a de todos os outros habitantes de uma grande metrópole, afogando minhas mágoas no café quente com gosto de poluição.
Pego o ônibus circular e esquento o banco enquanto posso ainda matutando os infortúnios da madrugada hostil que tive, então me levanto e cedo o lugar a algum idoso, ou alguma senhora que sustenta a família sozinha e precisa de mais descanso que esse simplório estagiário, desço no oitavo ponto, meus colegas de trabalho resmungam dizendo que eu poderia facilmente vir andando, mas minha mãe me liga todo dia querendo saber como anda o filho que  fugiu de casa para brincar de ser adulto e acabou indo morar sozinho em um bairro com uma penca de marginais, então para contentamento geral fiz um acordo de ir de ônibus trabalhar evitando assim os perigos da "zona sul" que minha mãe tanto me lembra em cada um dos seus preocupados telefonemas. Foi a única vez que cedi a um pedido dela  em sete anos então achei por bem manter o acordo, e de tudo ela não estava errada era meio perigoso por lá realmente.
já estava perto da porta da firma a essa hora, ainda fazia um tremendo frio e garoava fininho, o céu se estendia como um manto de seda prateada, eu gostava daquela paisagem.
Tomei o elevador e segui até a minha mesa, eu cuidava da maior parte da papelada, sabe como é "o estagiário que acabou de sair da faculdade merece ser explorado, afinal todos nós fomos porque ele precisaria de apoio, não é mesmo !?".
Ao fim do expediente eu embrulhei com cuidado todos os desaforos do meu dia para poder levar para casa com mais facilidade, sai do prédio eram quatro e cinco da tarde o frenesi de pessoas na calçada em frente a portaria era constante, decidi ir a pé para casa, aproveitando assim para observar o céu que começava a clarear e me lembrava agora um daqueles lenços de renda branca.

Chegando em casa eu tirei os sapatos desabotoei a camisa e me afundei na poltrona com mais uma xícara de café do lado, liguei a T.V. mas nada de interessante estava sendo transmitido. Meu celular tocou, era a Luciana, a menina com quem eu saí na semana passada, já tinha me esquecido dela, acho que ela se zangou comigo, eu provavelmente prometi que iria ligar. Resolvi que era melhor atender, se era para meu dia ser arruinado que fosse pela pessoa certa e não pelo meu sindico chato que iria bater na porta daqui a pouco reclamando do cachorro que não parava de latir lá na varanda.
Atendi o telefone, não foi bem o que eu imaginava, aguentei calado até que ela se cansou e decidiu que não valia mais a pena me xingar e desligou. Sempre imagino meus diálogos antes de consuma-los, e fico muito decepcionado com ocasionais lacunas ou quando eles não saem como eu esperava, por isso penso muito antes de falar, penso tanto que me esqueço que a outra pessoa não tem bola de cristal e não vai saber ler tudo que pensei. E assim sigo meus dias me arrependendo das coisas que nele não aconteceram, enquanto eu apoio minha cabeça no parapeito da janela da minha sala e assisto as vidas que lá embaixo seguem, furiosamente lutando contra esse mar de incertezas e inseguranças que nos rodeia, todos nós habitantes que escolheram por vontade própria  assistir ao por-do-sol entre as nuvens de poluição de uma grande metrópole.


Fernando Pessoa


Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
                     Fernando Pessoa

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